Inevitável Verão 2009

domingo, 22 de março de 2009

Um começo

Era uma vez...
No dia 26 de agosto de 1991 estive na Praça da Sé, em São Paulo, pela primeira vez como educadora de rua. Estava acompanhada por educadores experientes e pelo supervisor do Projeto “Criança de Rua” da Secretaria do Menor – local onde trabalhávamos. Eles tinham a incumbência de nos apresentar, mais duas educadoras e eu, aos “meninos de rua”. Devíamos conversar pouco e não acreditar na primeira coisa que ouvíssemos deles, pois se dizia que mentiam muito. Fiquei encantada, achei bonita a praça e enlouquecedores o barulho e a circulação de pessoas. Éramos apresentadas aos garotos e eles, imediatamente, nos chamavam de “tia”. Eu virei “tia loira” no primeiro minuto. Meu cabelo à época era oxigenado, quase branco. Fui embora com a certeza de que nunca aprenderia o nome dos garotos, nem conseguiria diferenciar um do outro e, ao mesmo tempo, sempre acreditaria em todas as suas histórias.
Voltei no dia seguinte e tornei a voltar todos os dias nos oito meses seguintes. Nas segundas, quartas e sextas-feiras, eu estava na Praça da Sé das 10:00 às 12:00 horas; às terças e quintas-feiras, das 13:00 às 17:00 horas.
Aprendi o apelido e o nome dos meninos, o lugar onde permaneciam durante o 2
dia e onde dormiam. Reconhecia os garotos à distância e o mesmo acontecia com eles em relação a mim.
Conheci a família de alguns,
os irmãos mais novos,
a avó,
a mãe,
o padrasto,
a vizinha,
o dono do bar,
o traficante,
o irmão mais velho,
a aridez do bairro,
o descuido da casa,
o desânimo dos adultos,
o desespero, a desistência e
o orgulho que os garotos tinham de nos apresentar às suas famílias,
dizendo nosso nome e contando que éramos legais e podíamos ajudá-los, além de ouvirem muito de nós que deviam fazer as coisas direito.
Ouvi as histórias mais fantasiosas e mais duras que já tinha podido imaginar até então. Mas todas eram histórias de crianças e suas famílias, e muitas se assemelhavam às histórias que já havia contado sobre a minha infância. Segundo Rodrigues (2001), os educadores têm sempre muitos pontos em comum com as crianças e os adolescentes com os quais trabalham.
Depois desse período de oito meses, passei a ir para as ruas apenas esporadicamente, porém continuava trabalhando num abrigo para “meninos de rua” e num serviço de pronto-atendimento para crianças e adolescentes em situação de risco, que também atendia as que estavam em situação de rua.
Em 17 de junho de 1996, quatro anos depois de ter freqüentado cotidianamente aquele lugar, voltei ao trabalho na Praça da Sé. Curiosamente, encontrei garotos que não via há algum tempo, reconheci e fui reconhecida no primeiro olhar. Percebi que tinha aprendido a me relacionar com a praça e as pessoas que habitavam esse lugar. Tinha aprendido também que não estava lá para ajudá-los, mas para criar situações em que eles pudessem aprender coisas diferentes das que já sabiam, especialmente aprendizados que permitissem seu retorno à escola.
Entre 1997 e 1998, conheci pessoalmente o trabalho com educação na rua feito em outras capitais e cidades menores. Essas experiências afirmavam que o número de “meninos de rua” aumentava, não importando se as quantidades fossem de 50 ou 2.000 meninos, e reiteravam o que conhecia pro meio da literatura.
Convivi também, na década de 1990, com profissionais que trabalharam na rua no final da década de 1970 e ouvi suas histórias. Se, por um lado, essas narrativas permitiam perceber certo progresso em relação ao trabalho feito naquela época, por outro lado, eu observava repetição daquelas práticas convivendo com as novas no mesmo espaço. Esse paradoxo inspirou várias questões: que olhares tão diversos são esses, de adultos para com os “meninos de rua”, que os leva a intervir de forma tão diferente, sem se dar conta de que são os memos que estão sendo vistos? E, apesar de todas essas intervenções, como continuamos a ver tantos meninos na rua? Esse questionamento está na gênese desta necessidade de dirigir-lhes um outro olhar. Passei a debruçar-me sobre a literatura e a acompanhar estudos que se iniciavam em São Paulo nesse tempo.
Os principais estudos que tratam desse tema em São Paulo focalizam ora o educador (Rodrigues, 2001; Rocha, 2000; Barbetta, 1993), ora as crianças e adolescentes (Gregori, 2000; Frontana, 1999; Ferreira, 1979). Em dois desses estudos, apareço como educadora entrevistada – além de ter participado mesmo da escrita de diversos textos (por exemplo, Gouveia, 2000). Ou seja, por cerca de dois anos, persisti em meu questionamento e investigação, enquanto
mantinha a prática de “educadora de rua”.
Em meu trabalho, em São Paulo e em outras cidades do interior do Estado, notei que, se havia crianças e adolescentes na rua, eram imediatamente rotulados como “meninos de rua”. Todo mundo – comerciantes, bancários, camelôs – todos sabiam reconhecer e nomeavam-nos “meninos de rua”. Estranhava que ninguém se referia a eles como “crianças” ou “jovens”.
Por esse tempo, já na pós-graduação e trabalhando agora não mais diretamente com os “meninos”, mas com projetos a eles destinados, também passei a interessar-me por fotografia e exercitar-me nela. E comecei a perceber o quanto as imagens eram “discurso”, enquanto parecem instalar verdades; e, no caso dos “meninos de rua”, o quanto contribuem para perenizar traços reconhecíveis desses sujeitos, principalmente para o senso comum.
Propus-me então a investigar imagens de meninos de rua, para conhecer a história que elas contavam, paralela e simultaneamente aos demais discursos sobre a questão. Procurei então fotografias publicadas pela imprensa entre as décadas de 1970 e 1990.
Priorizar o caminho da imagem e não o dos depoimentos para abordar o tema foi uma escolha que tem sua gênese na posição ético-política assumida nesses anos de prática no atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua. Nesse trajeto profissional, foi necessário discordar de procedimentos que lançavam mão das falas e histórias das crianças e adolescentes em pesquisas ou processos de sensibilização. Essas estratégias produziam benefícios e autoria àqueles (pessoas e organizações) que participavam das ações, mas não às crianças e adolescentes, fato que sempre me pareceu, se não abusivo, no mínimo injusto com os protagonistas.
Essa escolha levou-me a procurar também, e encontrar, pontos de ancoragem para análise na obra foucaultiana. Dessa forma, busco empreenderum trabalho genealógico, reconhecendo as forças que impeliram a trajetória dos “meninos de rua” nas últimas três décadas.
Mais especificamente, este estudo propõe-se a construir uma trama, trançando a análise de um conjunto de imagens de “meninos de rua” com a das práticas históricas institucionais e jurídicas voltadas a esse segmento da população. Busquei construir uma tessitura ao longo de dois eixos – os quais denomino fios – em que o fio do tempo/espaço articula os indícios das imagens às forças históricas que constituíram os “meninos de rua”; e, concomitantemente, o fio dos corpos articula outros, ou os mesmos indícios às forças modeladoras dos corpos do sujeito “menino de rua”.
Minha expectativa para com os leitores é a mesma que nos movia, educadores de rua, para com a população que convivia – e ainda convive – com crianças e adolescentes nas ruas: que todos pudessem vê-los como nós os víamos. No presente estudo, quero ler o que as imagens inscreveram nesse período e, mais que isso, que o leitor também encontre o olhar desses “meninos de rua”.
Apresento, a seguir, a organização do texto para permitir ao leitor acompanhar o tecer e, quem sabe, partilhar meu estranhamento.
O texto inicia-se com “Recortando o tema infância”, em que se explicitam pontos relevantes no processo de construção da infância como categoria social, bem como seus desdobramentos na história brasileira. Em “A ‘menoridade’ e as ruas”, busco articular as relações entre o Estado e a situação dos “meninos de rua”, observando nuances em torno da infância pobre brasileira.
Na seqüência, “As imagens produtoras de subjetividade” e meu “Encontro com as imagens” apresentam o ponto de vista adotado para a análise e o que vai ser analisado.
“O fio do tempo/espaço” constitui a primeira parte da análise das imagens, inscrevendo-as no tempo histórico e nas práticas de atendimento à infância e adolescência. As imagens são discursivas, e seus dizeres são aqui recompostos, compondo os olhares do fotógrafo, dos observadores e daqueles que são vistos.
Em seguida, “O fio dos corpos” traz a análise de recortes das imagens, permitindo conhecer as forças que modelaram os corpos.
A título de conclusão, “O tecer dos e nos sujeitos” remete às afirmações que me surpreenderam no decorrer do trabalho, que me fizeram reconhecer que esse processo genealógico alterou meu posicionamento frente ao trabalho de intervenção que havia realizado.

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