Inevitável Verão 2009

segunda-feira, 23 de março de 2009

O que podem educadores e professores em relação à cidadania?

[...] herança e tradição cultural são pequenas dicas para que o homem transite e atravesse o aberto, dicas que sussurram desde cedo – isto é ter corpo, isto é comer, isto é morrer [...]
Juliano Garcia Peçanha

A conversa aqui proposta se configura em considerações que, de nosso ponto de vista, tecem o campo relacional entre educação e cidadania.
O desafio primeiro é considerar que as crianças e os adolescentes devem ser tratados como cidadãos - pessoas portadoras e fruidoras de direitos mesmo que ainda não conheçam seu enunciado, os conceitos que compõem sua formulação, como exigi-los, qual a sua parcela de responsabilidade e tantas outras implicações que a condição de cidadão nos coloca. Este lugar de fruidor, que tem a permissão da ignorância está contemplado na lei, reconhecendo a condição peculiar de desenvolvimento que vivem crianças e adolescentes.
Aqui se configura um duplo eixo para o trabalho educativo: por um lado uma tarefa de tradução da lei e por outro uma exigência de exercitá-la na relação.
Os jogos são uma boa oportunidade para realizar este duplo eixo, desde que estejam associados a um exercício de atribuição de sentido à lógica e às suas conseqüências na conduta dos jogadores e na condução do jogo.
Esse reconhecimento da cidadania das crianças e dos adolescentes, ou seja, o fato de considerá-los sujeito de direitos constitui novos lugares sociais também para os adultos.
Todos aqueles que viveram sua infância e juventude até 1990 experimentaram ser objeto de tutela dos adultos – pais, professores, educadores. Ser objeto de tutela implica que os adultos têm a responsabilidade e o dever de decidir tudo sobre o cotidiano e os projetos para as crianças e os adolescentes. Dessa forma, os adultos que hoje são profissionais da educação, embora tenham vivido a condição de objeto de tutela, estão convocados a considerar as crianças e os adolescentes sujeitos de direitos.
Veja que a situação vivida pelos adultos não é simples. Tivemos uma vivência infantil na qual obedecer aos adultos estava dado, pois eles sabiam o que era o melhor para nós. Essa vivência teve características e marcas de intensidades diversas em cada um, são memórias que nos constituem. Ao nos identificarmos hoje com os adultos com os quais convivemos e, sem dúvida, em relação àqueles com os quais convivemos intensamente – familiares e professores-educadores – lembramos sutilezas dessa relação e na maior parte dos casos, reconhecemos a positividade das escolhas e decisões que fizeram por nós.
É neste cenário que estamos convocados a alterar nossa compreensão das relações adulto-criança. Assim, embora tenhamos vivido a condição de objeto de tutela e reconheçamos a face positiva desta condição, é necessário que deixemos de ter a prática que os adultos tiveram conosco, em nossa infância, como referência às relações que estabelecemos hoje com as crianças e os adolescentes.
O conflito subjetivo que enfrentamos é: como ter uma performance com as crianças diferente da que tiveram conosco, sendo que funcionou, pois estamos aqui e somos boas pessoas?
Podemos ter uma performance diferente da que tiveram conosco porque o nosso tempo possibilita outros modos de relacionamento e não porque os modos em que vivemos nossa infância com os adultos tenha menos valor, ou ainda, tenham sido inadequados. Ou seja, podemos vivenciar nossa cidadania compartilhada com as crianças e os adolescentes, experimentando a condição de um novo sujeito de direitos.
Contar e ler histórias que narrem a vida de adultos e crianças em outros tempos e em outras culturas pode ser uma oportunidade para discutir e compreender o contexto atual. Além disso, narrarmos nossas histórias pessoais ou solicitarmos aos idosos das comunidades que contem histórias de sua infância pode ser produtivo e encantador.
O livro Infância, do Graciliano Ramos, pode ser uma boa leitura para professores e educadores ampliarem repertórios de histórias.
O Estatuto da Criança e do Adolescente em suas diversas versões, desde as comentadas por juristas até as histórias em quadrinho, são leituras enriquecedoras.
Criar atividades em que as crianças e os adolescentes possam narrar suas histórias do passado, de quando eram mais novos, e coletivamente analisar os motivos das escolhas e suas conseqüências, valorizando todas e cada uma delas, num exercício de compreensão dos acontecimentos pode ser outra alternativa eficaz.
No que implica considerar o outro sujeito de direitos? Esta é uma questão que demanda respostas múltiplas. Nesta conversa apresentamos algumas delas:
• As crianças e os adolescentes têm direito de ser respeitados em suas diferenças de hábitos, de modos de vida, de interesses, de modos de se expressar, etc.
• As crianças e os adolescentes têm direito de serem ouvidos e sentirem-se seguros, ou seja, saberem onde estão, o que vai acontecer e o que se espera delas.
• As crianças e os adolescentes têm direito de escolher e propor, tendo seus interesses contemplados nas atividades que realizam.
• As crianças e os adolescentes têm direito de errar, de pensar e se expressar de formas mais ou menos distantes do conhecimento convencional.
• As crianças e os adolescentes têm direito de combinar seus repertórios pessoais com o conhecimento produzido no mundo, ampliando seus saberes.
• As crianças e os adolescentes têm direito a vivenciar situações de conflito, em que aprenda a discordar, criticar e propor respeitosamente.
• As crianças e os adolescentes têm direito de expressar seus sentimentos de tristeza, alegria, mágoa, raiva, ternura etc.
• As crianças e os adolescentes têm direito a construir relações afetivas – amizades entre iguais (mesma faixa-etária) e diferentes.
Dessa forma, afirmamos que o conceito, as práticas e os princípios de cidadania são experimentados no encontro de educadores e professores com as crianças e adolescentes com as quais estão em relação. Isto decorre que o alcance da ação educativa está no aqui – agora.
Ousamos ainda afirmar que a combinação desses entendimentos produz um encontro em que a participação é um exercício de todos: aprendentes e ensinantes.
para o desafio da educação integral se expressa em três princípios:
1. A experiência como formação
É experiência aquilo que nos passa, ou nos toca, ou nos acontece e, ao nos passar, nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está aberto a sua própria transformação. O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é:
• nem a posição (nossa maneira de pôr -nos),
• nem a oposição (nossa maneira de opor-nos),
• nem a imposição (nossa maneira de impor-nos),
• nem a proposição (nossa maneira de propor-nos),
• mas a exposição, nossa maneira de expor-nos, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. (LARROSA, 2004)
Dessa forma é necessário pensar o processo de aprendizagem como a criação de oportunidades para que crianças e adolescentes possam expor-se.
2. A heterogeneidade do mundo como fonte de aprendizagem
A contemporaneidade propicia e convoca que nos relacionemos com as diferenças dos modos de vida e com o volume de produções do conhecimento. As crianças e os adolescentes não estão mais separados dos modos de vida adultos, estão em contato com a heterogeneidade do mundo. A educação como lugar da tradição é convocada a dialogar com o contexto existencial.
3. A multiplicidade como direção das metas de aprendizagem
Pensar a educação como um processo em que se realiza o projeto que o educador tem sobre o educando, ao mesmo tempo em que é o lugar em que o educando resiste a esse projeto, afirmando sua alteridade.
As crianças e adolescentes afirmam-se como alguém que não se acomoda aos projetos que possamos ter sobre eles; não aceitam a medida de nosso saber e de nosso poder, colocando em questão o modo como nós definimos o que eles são, o que querem e do que necessitam; que não se deixam reduzir a nossos objetivos e que não se submetem a nossas técnicas. (LARROSA, 2000)
A inclusão dessa afirmação de alteridade no processo educativo, reconhece a multiplicidade e configura uma abertura para a constituição de sujeitos singulares e capazes de produzir sentido para suas aprendizagens.

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